Encontro Com a Milonga
Do Pampa ao Pantanal (2001)
Luiz Carlos Borges
Ouvi dizer que a milonga
Andava com a espinha torta
E até ouvi comentários
Que a milonga estava morta
Então quem foi que esta noite
Veio golpear minha porta?
Acordei de madrugada
Inquieto e meio nervoso
E fui terminar o pouso
Abraçado na guitarra
Parecia uma fanfarra
A mescla de corda e voz
Uma milonga entre nós
E eu grudado na guitarra
Só lá pelas quatro e meia
Já na madrugada longa
Eu controlei a milonga
Sem entortar harmonia
Enquanto ela me dizia
Num tom grave, mas sincero
"ou tu canta como eu quero
Ou não vê clarear o dia"
"tum tum tum, tum tum tum"
A milonga repetia
E eu não chorava nem ria
Com os olhos que eram braseiro
Mas quem nasce milongueiro
Mesmo com a vida num fio
Não refuga desafio
E nunca corre primeiro
E as horas foram passando
E eu já parecia outro
Ela viu que eu era potro
Mas disse "não te amedronta
Ninguém venceu, faz de conta
Que aqui nada se passou"
Mas quando o sol apontou
Eu tinha a milonga pronta!
E ainda, meio cansado
Depois desse pega-e-solta
Com jeito, campeei a volta
Antes que ela fosse embora
E perguntei sem demora
Porque eu sou curioso assim
"conta em segredo pra mim,
Onde é que a milonga mora?"
E a milonga então me disse
"não é segredo, parceiro
Já morei com o missioneiro
Que tinha n'alma um violão
Eu durmo em qualquer galpão
E desperto com a boieira
Mas, se tu for da fronteira,
Eu moro em teu coração"
E não pude mais contê-la
Quando enveredou pra porta
Me gritando "eu não tô morta,
E pra frente há muita lida
Por ora estou de partida
E a razão pouco me importa
Mas volto a golpear tua porta
Porque o teu rancho tem vida"
Nem cuidei de despedida
Senão o pranto me agarra
Afinei bem a guitarra
E num dedilhado assim
Pelo pago me perdi
Conforme a milonga manda
Eu não sei onde ela anda
Mas foi quem me trouxe aqui!