Eu Conheci João Hortácio
Fronteira (2008)
Mauro Moraes
Eu conheci João Hortácio
Muita gente conheceu !
Ele era parte do campo
Porque o campo era seu...
Viveram da mesma sina
- quando um precisa outro ajuda -
Uma simbiose de pampa
Que só o tempo é que muda.
João Hortácio foi campeiro
"conhecedor do riscado"
Fez século nesta terra
Cuidando o campo e o gado.
Sovou pelegos e bastos
No lombo destes cavalos
Viu pingos buenos nascerem
E os viu crescer, pra domá-los.
Nas suas mãos, muitos laços
Ganharam armadas pro céu,
Muito touro se fez boi
Depois de "afirmá um buléu".
Muita ovelha na tesoura
Das esquilas de janeiro
Teve a folha e a sua perícia
Comparsando o dia inteiro.
Amansador de veiacos
Entre paciência e pegada
Arrochou bocal nos queixos
Frouxou rédeas nas estradas.
Foi rastreador de caminhos
Conhecedor de fronteiras
Desde onde deitar os arames
Até as chaves das porteiras.
Juntou, na vida por conta,
Uns pilas, reses e pingos
Mas deixou irem na estrada
Pelas folgas de domingo.
Amigo de prosas largas
E tropas do mesmo porte
Em cancha tava ou baralho
Foi um agregado da sorte.
Conhecedor dos fundões
Das cruzadas dos arroios
Espalhou sua voz nos ventos
No eco dos seus aboios.
Deixou sua alma no campo
Nas recorridas que fez
Sabia o ciclo dos campos
Nos olhos de cada rês.
Fez açude a mariposas
Fez lenha pra tanto inverno
Consertou linha e alambrado
Que ainda hoje tão no cerno.
Fazia cordas pro gasto
E algum buçal pra domar
Que "guentaram" mais que ele
Sem precisar remendar.
Sempre "muy bien" a cavalo
- onde cruzava com a vida -
Criou filhos nos caminhos
Pra mesma escola da lida.
Mas o tempo por senhor
No seu destino incomum
Fez rumos de encruzilhada
Pra sina de cada um...
Sabia os mates jujados
E onde apeiar na estrada
Do gosto da canha branca
E do escuro da madrugada.
Dos sonhos da moça linda
Que deixou junto a cancela
E que o destino maleva
Deu outros sonhos pra ela.
O tempo fez dias claros
Mas também fez temporais
E a velhice fez costado
Pra não soltar nunca mais.
Ficou mateando "nas casa"
Lembrando o tempo da lida
E resolveu encilhar
Sem dar adeus na partida.
Esses dias foi embora
Sem levar nada na mala
Alguém lhe deu flores brancas,
Bombacha nova e um pala.
Foram poucos que souberam
Da partida assim tão breve.
O tempo apaga nos homens
O que vida inteira escreve...
Por causa deste descaso
Tem muito pingo sem freio
E boi refugando o laço
Sem gente pra dar costeio.
O campo perdeu querência
Quase que meia invernada
Pra não dizer que perdeu-se
No rumo da própria estrada.
Campeiro, tem campo afora
Desses que andam montados
Mas há pouco João Hortácio
Pra os campos do nosso Estado.
Eu conheci João Hortácio
Muita gente conheceu...
Foi o verso mais campeiro
Que o meu pago já escreveu!!