Remorsos de Castrador
Acervo Gaúcho (1998)
Jayme Caetano Braun
Um pealo --- um tombo --- grunhidos
De impotente rebeldia,
O sangue da cirurgia
No laço e no maneador.
Nada pra tapear a dor
Do potro que --- sem saber,
Perdeu a razão de ser
Na faca do castrador.
Há um bárbara eficiência
Nessa rude medicina,
A faca é limpa na crina
Que alvoroçada revoa,
Pouco interessa que doa,
A dor faz parte da vida.
Há de sarar em seguida,
Desde guri tem mão boa.
Aprendeu --- nem sabe como,
A estancar uma sangria.
Sem noções de anatomia
É um cirurgião instintivo
Que --- por vezes --- pensativo,
Afundou na realidade
Da crua barbaridade
Desse ritual primitivo.
Já faz tempo --- muito tempo,
Que um dia --- na falta doutro,
Castrou seu primeiro potro,
Um zaino negro tapado.
Que pena vê-lo castrado,
O entreperna coloreando
E os olhos recriminando,
Num protesto amargurado.
Depois do zaino --- um tordilho,
Depois --- baios e gateados,
Um por um sacrificados
Pela faca carneadeira
E o rude altar da mangueira
A pedir mais sacrifícios
Dos bravos fletes patrícios,
Titãs de campo e fronteira.
Por muitos e muitos anos
Andou nos galpões do pampa,
Castrando pingos de estampa
Com renomada experiência,
Cavalos reis de querência,
Parelheiros afamados,
Pela faca condenados
A morrer sem descendência.
Às vezes, durante a noite,
Um pesadelo o volteia
E o remorso paleteia.
Castrador!... que judiaria!
E quando sem serventia
Por aí deixar semente
No mundo onde há tanta gente
Pedindo essa cirurgia.
E ali está --- defronte ao rancho,
Pastando o mouro do arreio,
Pingo de campo e rodeio
Que castrou --- quando potrilho.
O mouro --- mesmo que filho
Do xirú velho campeiro,
O último companheiro
Do seu viver andarilho.
Na primavera --- outro dia,
Um potranca lazona,
Linda como temporona,
Vestida em pelagem de ouro,
Veio se esfregar no mouro,
Mordiscando pelo e crina,
Mais amorosa que china
Num princípio de namoro!
E o mouro? --- pobre do mouro!
Não pode ter namorada.
Veio, direto à ramada,
Numa agonia sem fim,
Olhando pro dono, assim,
Num bárbaro desespero,
Como dizendo: parceiro,
Vê o que fizeste de mim!